UMA CRÔNICA CRÍTICA
SOBRE A PINTURA DE NOÊMIA GUERRA
George S. Whittet - 1987 |
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Encontrei Noêmia Guerra pela primeira vez, em fevereiro de
1965, no Royal College em Londres.
Noêmia, por volta dos quarenta anos de idade, demonstrava,
por sua atitude firme, ser uma mulher ativa. O que mais
impressionava em sua fisionomia, eram os olhos, que
refletiam inteligência viva e reação imediata, tanto
mental, quanto emocional.
Eu e Noêmia conversamos sobre amigos brasileiros em comum.
Ela me disse também que vivia em Paris, em um estúdio
alugado em Montparnasse, desde 1958. Noêmia
disse-me também que estava para fazer uma exposição, em
maio vindouro, em uma pequena galeria do West End
londrino.
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George Whittet
e Noêmia Guerra |
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Como, na época, eu ia freqüentemente à Paris, a fim de
visitar galerias, propus-lhe, se acaso ela tivesse
interesse, que me levasse para ver seus quadros que seriam
expostos em Londres ou, pelo menos, algumas de suas outras
pinturas. |
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A ocasião apresentou-se e então pude ver o trabalho da
artista em seu ateliê parisiense e, mais tarde, sua
primeira exposição em Londres, na minúscula St.
Martin´s Gallerie, dirigida por um emigrado veneziano
de nome Victor Zamattio. Tal exposição havia sido
organizada pela Sra. Raquel Braune, Adida Cultural da
Embaixada do Brasil que promoveu também um vernissage
de boas-vindas, reunindo críticos de arte e personalidades
da sociedade de Londres.
Em uma crítica sobre a exposição, escrevi: “As pinturas a
óleo de Noêmia Guerra mostram grande vitalidade e
espontaneidade em sua composição, na qual os
“azuis-cobalto e os violetas” sugerem o céu, por meio de
alusões abstratas (céu este que eu iria logo conhecer no
Brasil). As composições, quase abstratas, sugerem formas
no espaço por meio da cor e modulações de tons.
Com efeito, a essência de suas composições era “o
movimento” propiciado pelas variações de “formas-tons”,
sugerindo ao espírito do observador “figuras dançantes”...
Era impossível encontrar na animação de tal natureza algum
traço de influência do breve curso ministrado pelo
Professor André Lhote, que ela cursou em 1951, quando o
professor francês havia sido convidado para ministrar um
curso de Composição Pictórica no Instituto Municipal de
Belas Artes do Rio de Janeiro, onde Noêmia estudava.
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Os contornos duros e bem definidos que Lhote havia tirado
de Cézanne e, mais tarde, do cubismo não apresentavam
nenhum interesse para Noêmia. A cor, em toda sua
potencialidade, era o fator predominante nos quadros de
Noêmia; gradualmente, essas modulações de cor trouxeram,
em sua criação pictórica, mais associações na compreensão
e no espírito do observador.
Eu apreciei de tal forma a pintura de Noêmia Guerra que a
apresentei ao Sr. Alwin Davis, um jovem designer
que havia trabalhado em Hollywood e voltara a
Londres para abrir uma galeria em Mayfair. O Sr.
Alwin Davis e seu sócio, Sr Ronald Dongworth, aceitaram
incluir os quadros de Noêmia Guerra em uma exposição na
Alwin Gallery, no ano seguinte.
1966 foi um ano importante na carreira de Noêmia Guerra.
Em primeiro lugar, houve uma grande exposição individual
na galeria da rive droite, Jacques Massol, e também
pela participação de Noêmia na exposição “Três Artistas”
na Alwin Gallery de Londres, que eu prefaciei.
Jacques Massol convidou-me para escrever a introdução do
catálogo da exposição parisiense. O que se segue é um
trecho de tal introdução.
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Depois de meu encontro com Noêmia Guerra visitei o
Brasil. Em primeiro lugar, para ver e comentar a Bienal de
São Paulo, o que me permitiu aprimorar meus conhecimentos,
não apenas da arte brasileira, mas também do aspecto
sócio-cultural do país de Noêmia. Em particular, as
paisagens, o povo, os contrastes quase surreais entre
riqueza e pobreza, as misturas étnicas afro-européias, os
“silenciosos”, mas sempre presentes, descendentes das
tribos indígenas, elemento indispensável da mistura racial
do povo brasileiro.
Tal experiência permitiu-me melhor apreciar os reflexos do
passado de Noêmia, já evidentes em suas pinturas.
Com essas impressões frescas em minha retina, a linha dos
cumes das montanhas da Serra dos Órgãos emergindo da terra
vermelha, o avião aprontava-se para aterrissar no
Aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro.
Percebi então que esse “Brasil Tropical” era, espiritual e
cromaticamente, expresso nas imagens tropicais das
paisagens de Noêmia, como vemos, por exemplo, em seu
penetrante quadro “Tijuca”, a floresta urbana situada na
região montanhosa do Rio de Janeiro.
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Tijuca
-
1966
Óleo sobre tela - 81 x 65cm |
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No Rio, um amigo acompanhou-me de carro e levou-me para
visitar numerosos lugares característicos, entre outros, a
Floresta da Tijuca. Durante o passeio, enquanto sentia-me
imerso na atmosfera verde da floresta tropical, veio a
minha memória o quadro de Noêmia intitulado “Tijuca”, com
as cores da floresta; era exatamente isso! Um ambiente
verde escuro constituindo o fundo, contrastes ocres
avermelhados da terra, o ritmo das subidas e descidas da
colina, sugeridos no quadro por meio de modulações de
verdes claros como raios de sol passando através das
folhas e galhos. Subitamente, aparece, por entre os
rochedos sombrios, um brilho argênteo; era uma cascata
refletindo o azul do céu.
Uma vez mais, senti a percepção como um ato original e
criativo graças ao qual estamos ao mesmo tempo inseridos
em um ambiente e transportados a uma lembrança.
Cheguei ao ponto de não mais considerar que o mérito de
uma cultura repousa sobre uma habilidade técnica, mas
sobre uma ruminação de um gosto popular ligado ao
modernismo do século XX. Devemos considerar, antes de
tudo, uma pintura como um grafólogo e ler na composição o
caráter do pintor. A arte, mais do que nunca, é o
autógrafo de uma personalidade.
Submeter-se aos calculadores eletrônicos e à abstração
óptica é renunciar ao poder espiritual do artista.
Felizmente, ainda há artistas fiéis ao ritmo de seu
próprio magnetismo. Noêmia Guerra é um deles. Sua pintura
irradia uma luminosidade que é “Pintura”, esta preciosa
substância que recentemente sofreu tantas devastações e
invenções contra-feitas.
Enquanto poeta, creio que, em suas paisagens e danças,
Noêmia Guerra abraça a vida com uma alegria corajosa, a
que poucos se entregam.
Enquanto crítico, estou certo de que sua mensagem é
inteligível, sem necessidade de decodificação. É Pintura
em estado puro, de significado universal.
Menos de três meses depois de sua exposição em Paris,
Noêmia apresentou dezoito quadros na Alwin Gallery
de Londres, um total de quarenta quadros nas duas
exposições.
Durenmatt disse, com muita razão, que “o artista não pode
aceitar uma lei, a menos que ele próprio a tenha
descoberto”.
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Noêmia descobriu progressivamente, em suas pinturas tão
pessoais e eufóricas, que não há uma forma pré-concebida
em que uma imagem mental possa se vangloriar de sua
realização. Cada composição é um passo do artista em sua
viagem através de uma paisagem de luz.
Mais tarde, em 1966, fui convidado para fazer parte de um
júri de críticos europeus em uma exposição internacional
organizada pelo município de uma pequena cidade da
Eslovênia, Sloveny-Gradec, com a finalidade de atribuir
prêmios. Fiquei feliz em ver que a luminosa pintura de
Noêmia Guerra – “As Falésias de Algarve” - estava muito a
frente das outras pinturas iugoslavas ou européias.
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Em 1967, Noêmia e seu companheiro, Julian Luna, de Prada,
passaram parte do inverno no Líbano, onde encontraram o
povo nos souks e a antiga dignidade nas ruínas
isoladas de Baalbeck, o que trouxe novos temas para as
composições de Noêmia.
Julian e Noêmia divertiram-se com as discussões nos
Mercados dos souks: as roupas, xales, echarpes
bordadas, como bandeiras brilhando sob o sol surgindo no
interstício das ruelas.
Durante sua viagem ao Líbano, Noêmia fez numerosos
desenhos e aquarelas para mais tarde trabalhar a partir de
tais “estudos” ao voltar para Paris.
A viagem ao Líbano e a estada anual em Lagos-Algarve deram
à Noêmia motivos para as composições de seus quadros que
seriam expostos na Alwin Gallery no início de 1968.
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Encostas Rochosas no Algarve - 1969
Óleo sobre tela - 120 x 154cm |
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Nas pinturas de Noêmia Guerra, pode haver diferentes
temas, mas vemos sempre uma abordagem e tratamento
unificados.
Para Noêmia Guerra, pintar o movimento não é descrevê-lo
por meio de formas, mas criar uma composição que dê a
sensação de movimento a partir de uma modulação de tons.
Assim, em suas composições em que os dançarinos, com graça
e vitalidade, fundem-se no fundo do quadro, estabelece-se
uma modulação de tons que faz contra ponto com outras imagens-formas dançantes em primeiro plano, marcando, a
partir desses contrastes de “valor-cor”, o ritmo, pela
decisão do pintor.
Nos quadros de “Encostas Rochosas" e
"Costa de Algarve”, o contraste dos “valores-cores” cria
uma nova luminosidade, com seus próprios raios de luz.
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A alienação do artista na sociedade é um desconforto
cultural contemporâneo; mas, para Noêmia, não há alienação
entre a variedade do espetáculo oferecido pela vida e a
calorosa resposta empática que ela transmite com
entusiasmo ao observador. |
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Durante o ano de 1969, Noêmia fez nova exposição na
galeria parisiense Jacques Massol e na galeria Alwin de
Londres; as duas exposições foram simultâneas. Ambas foram
notáveis pela diversidade de temas inspirados nos contatos
pessoais diretos realizados durante suas viagens. Em minha
introdução para a exposição da Alwin Gallery, eu
ressaltei o desenvolvimento e a maturidade de um talento
inato, nutrido pela experiência e contínuos esforços.
Nos quadros inspirados pelas aquarelas realizadas
in-loco por ocasião de suas visitas ao Brasil,
Portugal, Líbano, a figura humana coloca-se naturalmente
na paisagem. Escrevi no “Le Monde” (2) “Noêmia
Guerra voltou à Bahia (Brasil), em 1968. Salvador, a
capital desse estado, possui esplendida arquitetura
barroca dos séculos XVII e XVIII, mas a imaginação de
Noêmia era mais estimulada pelo povo que animava o
ambiente esmagado pelo sol; o “Mercado de Peixes” de
Salvador apresenta grande singularidade, sendo uma obra
pintada com extraordinária audácia de cores e de
movimentos. Cada um dos cinco painéis é um quadro
completo, que pode ser admirado como tal separadamente,
mas que, ainda assim, faz parte de uma composição
pictórica. Para mim, “os tons” provocam uma exaltação,
quando criam um espaço e fazem aparecer “um inesperado”.
Em 1973, Noêmia apresenta sua quarta exposição individual
na Alwin Gallery. Escrevi sobre ela em “Pictures
on Exhibit” (New York) (3): “As Encostas de
Algarve oferecem temas para Noêmia Guerra. As variações do
motivo, que recebem constantemente golpes do vento e das
ondas, revelam, graças a uma pintura vibrante, uma força
crescente na composição e na percepção das modulações de
tons quando exprimem as formas dos rochedos sob o sol”.
Passam-se quatro anos entre a quarta exposição de Noêmia,
na Alwin Gallery, e a exposição seguinte, em uma
galeria, igualmente organizada por sua amiga Raquel Braune.
Após um vernissage de muito sucesso na Stephen
Maltz Gallery (Cork st. 22. Londres) em 1977, escrevi:
“encontrei as pinturas de Noêmia Guerra ainda mais fortes
e dinâmicas, na figuração e energia empregadas. Sua
característica principal é a exuberância, com um domínio
sobre uma das mais elementares expressões da força vital
de qualquer sociedade: a dança. A dança favorita de Noêmia
é a de seu Brasil natal: o samba. Ela pinta os dançarinos
e dançarinas, expressando a sensualidade destes, de
maneira que a qualidade táctil de sua pintura passa pela
textura e pela orientação de seus traços. Em algumas
composições, o pincel parece acompanhar as formas e
acariciar os pigmentos, em uma coreografia manifestamente
sexual. O tom dominante é o vermelho, o das rosas, dos
pores do sol, dos frutos maduros, do vinho, do sangue,
símbolos de nosso mundo atual de violência, mas mantido
sob controle pela expressão de uma alegria comum,
sintetizada pela música do samba, reflexo da alma do povo
brasileiro”.
Em 1979, Noêmia expôs, na galeria Marcel Dernhim, em
Paris, seus quadros mais recentes, demonstrando um
contraste fantástico entre estabilidade e movimento. Em
minha crítica (4) escrevi:”por um desenvolvimento
constante em direção a uma relação de formas mais
expressiva, sua “pintura irisada” projeta uma luminosidade
interior, de rara característica pessoal, quer as facetas
brilhantes sejam refletidas sob formas estáticas ou
dinâmicas, como que animadas pelo sopro de uma brisa, uma
sutil modulação de luz faz com que se movam todos os
elementos da composição como que por refração”.
No ano de 1981, em nova exposição na galeria de Marcel
Dernhim. Nos retratos, Noêmia Guerra deu um passo
importante em relação aos últimos dois anos, alcançando
uma simplicidade notável. Conhecendo pessoalmente alguns
de seus modelos e a afinidade entre eles e a pintora, admirei a honestidade com a qual os mostrava
”em duas dimensões”, em um resumo generoso, audacioso e
descompromissado.
Ela participou do Festival do Brasil,
que ocorreu no Barbican Centre em Londres, com três
trabalhos. Em minha introdução ao catálogo de tal
exposição, escrevi: “Noêmia Guerra figura entre as
melhores artistas mulheres do Brasil”. Duas composições
expressivas, em cores gritantes, traduzem um caloroso
engajamento com a vida do povo, seja em cenas animadas nas
praias de Algarve ou em grupos de dançarinos na Bahia”.
Nos anos mais recentes, Noêmia passou a primavera e o
verão em seu ateliê de Lagos em Algarve, e o outono e o
inverno no seu ateliê em Paris.
Noêmia consagrou-se pintando retratos, trabalho que ela
considera cada vez mais estimulante. Comentarei três dos
mais impressionantes, os quais tive oportunidade de ver em
1986, quando fui à Paris com o intuito de posar para um
retrato no ateliê de Noêmia.
O primeiro retrato que atraiu minha atenção foi de um
jovem barbado, vestindo uma camiseta azul com um desenho
em linhas brancas, representando um garoto que saltitava.
À minha pergunta “por que esse desenho?” Noêmia respondeu:
“o desenho é de Portinari, um retrato de seu filho, o
professor de matemática João Portinari, que usava essa
camiseta quando veio me visitar em uma de suas viagens à
Paris. Esse desenho se tornou o logotipo da Instituição
“Projeto Portinari”, fundada por seu filho João para
preservar a obra de Cândido Portinari, expoente da pintura
figurativa do Brasil, após a morte daquele em 1961.
Apreciei a expressão de tenacidade do homem com barba e a
sutileza da pintora Noêmia Guerra que, embora copiasse o
desenho de Portinari impresso na camiseta, fez dele uma de
suas próprias criações.
O segundo retrato impressionou-me, pois nele reconheci a
modelo Maria Nunes, agora uma jovem mãe, posando com o seu
filho, um bebê de oito meses chamado Igor. A pose do bebê
é a mais estranha que já vi em uma pintura de Madonna – o
bebê posando nu, de pé sobre os joelhos da mãe; admirei a
composição e o cromatismo em perfeito acordo com o frescor
dos modelos.
O terceiro retrato, igualmente digno de nota, era da
célebre cantora brasileira de ópera, que vive em Paris,
Maria d´Apparecida, usando seu chapéu característico. No
fundo da composição, mas incorporada à sua estrutura, uma
cena imaginária, a figura de Feliz Labisse, discretamente
modelada, ele próprio pintando um retrato de Maria
d´Apparecida. Essa “evocação pictórica”, na medida em que
já houve laços no passado entre as figuras retratadas,
revela a maneira imaginativa como Noêmia trata sua
composição, algo raro nos retratos modernos.
Para Noêmia Guerra, cada composição é um desafio e um
estímulo para representar suas imagens mentais e não
apenas uma técnica.
Chamá-la de expressionista seria um clichê inadequado para
descrever o estilo de Noêmia Guerra; em todas as suas
pinturas, tais como as que vi sucederem-se ao longo de
vinte e três anos, aparece antes um “subjetivismo”
marcado, revelando sua maturidade na abordagem dos temas,
refletindo sua personalidade íntima, feita de uma
generosidade de espírito, combatendo as dificuldades,
apreciando a força da Natureza, lançando mão de todos os
recursos de cores, por intermédio de uma experiência
pessoal e uma sensibilidade aguda.
George S. Whittet - 1987
Referências:
(1)
Studio International,
maio de 1965.
(2)
Le Monde,
30 de outubro de 1969.
(3)
Pictures on Exhibit
- New York, fevereiro de 1973.
(4)
Art and Artists,
fevereiro de 1973. |
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